quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Violência doméstica


Fonte: Cidadania - Fundação Bunge, Ano 4, nº 24, Abril/Maio 2005.


Resultados de pesquisas realizadas nos últimos anos e o monitoramento de entidades de defesa dos direitos femininos comprovam que a violência contra a mulher tornou-se amplamente democrática. Hoje, não se distingue países ricos e em desenvolvimento, cor da pele ou classe social. Como é um mal em progressão, dissemina-se por toda a rede de relacionamento social e profissional dos envolvidos, afetando maridos, filhos, parentes e até mesmo a produtividade das vítimas que trabalham fora de casa.

Os números têm origens em fontes diversas: levantamento da Organização Mundial da Saúde, citado durante o Fórum Violência Doméstica realizado em São Paulo no Dia Internacional da Mulher (8 de março), concluiu que 70% das mulheres assassinadas com idade entre 15 e 44 anos foram mortas por homens com quem mantinham ou haviam mantido algum tipo de relacionamento amoroso. No Brasil, o mais recente levantamento, realizado em 2001 pela Fundação Perseu Abramo junto a 2052 mulheres de 187 municípios, registrou percentual de 11% de mulheres que foram espancadas ao menos uma vez na vida. Espontaneamente, 19% admitiram ter sofrido algum tipo de violência, percentual que saltou para 43% quando foi utilizado o método da indução.

Entre os países desenvolvidos, o Instituto Patrícia Galvão, entidade que desenvolve projetos sobre direitos da mulher, reproduziu parecer do Banco Mundial, divulgado no início da década, que estimou em 1 bilhão de dólares canadenses os custos da violência contra as mulheres no Canadá, incluindo polícia, sistema de justiça criminal, aconselhamento e capacitação. Nos Estados Unidos, esses custos variam entre US$ 5 bilhões e US$ 10 bilhões ao ano. No âmbito profissional, a conclusão é que um em cada cinco dias de falta ao trabalho é causado pela violência sofrida pelas mulheres dentro de casa.

A igualdade de classes em relação às vítimas da violência foi constatada pela socióloga Olívia Rangel que, em 1998, participou da criação de umas primeiras organizações preocupadas em defender os direitos femininos, a União Brasileira das Mulheres, UBM. Ela considera atuais as conclusões de sua tese de mestardo, Madame também apanha, publicada em 1999 a partir de um levantamento realizado com 311 estudantes da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (50,1% dos entrevistados tinham renda familiar de 3 mil a 10 mil reais, considerada alta para os padrões brasileiros). Do total, 8% dos estudantes referiram-se a cenas de violência física entre os pais, mas 38,5% afirmaram conviver ou ter convivido com formas de violência, inclusive a verbal e a emocional.

Márcia Salgado, delegada dirigente do Setor Técnico de Apoio às Delegacias de Defesa da Mulher do Estado de São Paulo, observa que as diferenças sociais se manifestam no momento em que os casos extrapolam a esfera familiar: "As vítimas menos favorecidas procuram a delegacia no primeiro momento, enquanto as mulheres de classes economicamente mais altas contatam, em primeiro lugar, seus advogados. Eles é que são incumbidos de comunicar o fato às delegacias da mulher, pois o temor de expor a intimidade é maior nesse perfil socioeconômico.

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A realidade é mais assustadora do que os números.

Tanto a UBM quanto as outras organizações privadas e públicas têm trabalhado com um conceito amplo do problema, em que a violência não se caracteriza apenas pela agressão física. O objetivo do agressor é desestruturar a mulher, dificultar e até destruir seu acesso a qualquer tipo de desenvolvimento - pessoa, profissional ou social. E, nesse contexto, o cenário pode ser mais preocupante do que se imagina, alerta a socióloga: "O que conhecemos é a ponta do iceberg. São os casos que chegam às Delegacias de Mulheres, às Ongs e às Casas de Abrigo (acomodações para onde são transferidas as vítimas nos casos de risco de vida). Mas até aí há um longo caminho a percorrer: a vítima tem que superar o medo e a falta de informação , entre outros obstáculos".

Quem vive o dia-a-dia dos casos de violência atesta a veracidade desta observação: "Todas as vítimas telefonam escondidas - de um orelhão ou do telefone do vizinho", relata Ana Paula Gonçalves, advogada e ouvidora da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, vinculada à Presidência da República. O serviço, que funciona desde 2003, registrou 400 denúncias até o final de 2004 e, além de informar o caminho jurídico a percorrer, tem acompanhado o processo e prestado assistência psicossocial às vítimas. Apesar de não haver estatísticas oficiais, foi possível traçar o perfil básico das mulheres atendidas: "Há o marido autoritário e a mulher dependente financeiramente, que não consegue se desvincular tão facilmente daquela estrutura", resume Ana Paula.

A ouvidoria espera que o serviço ganhe impulso em 2005 a partir de dois melhoramentos previstos: a realização de um levantamento estatístico que permitirá mapear cientificamente o perfil das vítimas e direcionar ações do governo federal, e a entrada em funcionamento de um serviço 0800, que deverá estimular as ligações devido à gratuidade do serviço.

Aparecida Maria de Almeida, presidente do Conselho Estadual da Condição Feminina em São Paulo, é mais uma especialista que considera o atual aparato jurídico insuficiente para defender as mulheres. "À violência física e moral somam-se à social e à econômica, pois, nos casos em que a renda é insuficiente, não há com a vítima sair de casa. E os abrigos não deixam de ser outra violência, pois a mulher é isolada e perde até o vínculo com o trabalho."Ela vê outra deficiência na capacitação dos profissionais envolvidos no primeiro atendimento às vítimas: "Eles precisam orientar as mulheres sobre o fato de que os casos de agressão não são assunto privado, coisa de casal, como se dizia. Devem analisar as seqüelas e informar aos órgãos competentes. A violência diz respeito a toda a sociedade e deve ser denucniada".

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Lei branda gera descrédito
No Estado de São Paulo, A Secretaria de Segurança Pública registrou um pequeno decréscimo nos casos de lesões corporais e ameaças morais a mulheres, de 2003 para 2004. Foram 87.206 casos de lesões corporais em 2003 contra 87.011 no ano passado. As ameaças morais totalizaram 87.444 em 2003, diminuindo para 85.129 casos. A sociedade está mais consciente? Não necessariamente, na opinião da delegada Márcia Salgado. Ela afirma: "A lei atual acaba gerando descrédito e, muitas vezes, a mulher não se preocupa em dencunciar ou o crime não é apurado nem incluído nas estatísticas. Pode ser essa, portanto, a razão da redução de casos constatada nos levantamentos oficiais". Ela não é a favor da prisão em todas as situações, "mas é o caso de se pensar em penas de caráter educativo para que o agressor reflita sobre seu ato".

Das 365 Delegacias de Defesa da Mulher existentes no país, 125 funcionam no Estado de São Paulo e destas, 12 estão na região da Grande São Paulo. Até 2002, atuavam apenas como Polícia Judiciária, tendo como função a apuração dos crimes denunciados. A complexidade tem levado as delegacias a providenciarem assistência psicológica às vítimas e ao agressor, que é convidado a comparecer a reuniões de grupos coordenadas por psicólogos. Na 1ª Delegacia, localizada no centro da capital paulista, há até uma brinquedoteca preparada para distrair os filhos pequenos das vítimas no decorrer do processo.

Punição aos agressores, atuação permanente de organizações comprometidas com os direitos da mulher, entidades sociais atuantes e ampliação dos canais de comunicação para atingir todas as camadas da população. Estes são os elementos básicos defendidos por grande parte dos especialistas no sentido de reduzir a violência doméstica no Brasil. "Em paralelo, é preciso educar as novas gerações - dentro das famílias e na escola. Só assim evitaremos a reprodução de comportamentos que levem à violência contra a mulher" completa Maria Sanematsu, do Instituto Patrícia Galvão. "Mas é imprescindível que o estado participe dessa luta com o desenvolvimento de políticas públicas, porque sem apoio institucional nenhuma estrutura tem chance de se consolidar, defende Olívia Rangel.

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